terça-feira, 25 de junho de 2013

O que o Papa Francisco mudou em 100 dias‏




'Será preciso esperar para ver se estas promessas serão confirmadas, mas o papa Francisco não cessou de espantar-nos'
 Na sexta-feira, 21 de junho, completaram-se 100 dias desde a eleição do papa Francisco e uma mini rrevolução está sacudindo a Igreja católica – e o seu bilhão de fiéis. Tudo, no estilo, nos temas, nas reformas anunciadas, distingue Jorge Mario Bergoglio do seu predecessor Joseph Ratzinger, embora a relação entre os dois papas seja muito cortês. Entre outros aspectos, os dois homens se preparam para subscrever juntos uma encíclica sobre a fé cristã, iniciada por Bento XVI e levada a termo por Francisco, e será a primeira vez na história da Igreja que acontece algo semelhante.
O comentário é de Henri Tincq, por longos anos o jornalista especializado em assuntos do Vaticano, que escrevia no Le Monde. O comentário é publicado na revista eletrônica francesa Slate, 20-06-2013. A tradução é de Benno Dischinger.
O papa Francisco se libertou do arrocho da Cúria romana – o aparato de governo da Igreja – da qual Bento XVI era refém. Fez a escolha simbólica fundamental de não mais residir nos apartamentos privados no palácio pontifício, que considera sinistros, separados do mundo exterior, demasiado próximos à Cúria, e de refugiar-se em Santa Marta – no interior da Cidade do Vaticano – onde residem os visitantes religiosos e os cardeais durante o conclave.
Ali encontra, em toda simplicidade, o que quer, sem considerar o protocolo; levanta-se às 4h30, se dirige para as refeições na sala comum, trabalha, recebe, vai à cama cedo. Vai ao Palácio Pontifício somente para as audiências de alto nível (como as dos chefes de Estado). Assim a Cúria não pode aprisioná-lo, nem decidir para ele o programa dos seus encontros, nem filtrar as informações que lhe chegam. Toma a peito toda uma cultura vaticana, cuja força de inércia e cujo gosto do segredo são terríveis. Jovial, espontâneo, este papa latino-americano necessita de contatos humanos, enquanto seu predecessor governava de maneira solitária. Cada manhã, na capela de sua residência, recebe grupos de visitantes – entre os quais funcionários do Vaticano – para sua missa cotidiana, no decurso da qual prega como um simples pároco e distila suas mensagens, a propósito do demônio, da mundanidade e do matrimônio. 
Quando vai à Praça de São Pedro, desce do papamóvel para beijar crianças e deficientes. Provoca risadas dizendo que a Igreja não é “uma baby-sitter”, mas “uma mãe”; ou convidando religiosas a não comportar-se como “donzelas”.
A montanha de gestos e palavras é surpreendente, mas já se pode entrever aonde vai este pontificado: para a defesa de um cristianismo social voltado à pureza das origens, autêntico nas suas convicções, empenhado pelos mais débeis e os excluídos (“Uma Igreja de pobres para os pobres“).
O papa jesuíta fustiga a “mundanidade” e a hipocrisia que reinam, segundo ele, em sua Igreja, ou a tendência católica a “ser auto-referencial”. Evoca a ameaça do demônio e do pecado, reclama por profundas reformas da economia mundial, aponta o dedo contra o narcisismo da sociedade, convida os fiéis a irem evangelizar as “periferias”: “Se a organização assume o predomínio, o amor diminui e a Igreja se torna uma ONG”.
Ainda não se pronunciou de maneira precisa sobre o aborto ou o matrimônio para todos, mas ninguém pensa que pretenda atenuar sobre estes pontos as proibições da Igreja. Trata-se, em definitivo, de um discurso de ruptura e de verdade que é facilmente escutado, a julgar pelo entusiasmo das “audiências” repletas e transbordantes na Praça São Pedro, mas que perturba profundamente a “máquina” vaticana. Esta última não controla mais as declarações verbais do Papa, já não sabe mais que estatuto conferir às suas palavras e às suas pregações cotidianas, à narração dos seus encontros espontâneos difundida pela mídia e interpretada até as últimas consequências. De que deriva uma impressão de cacofonia e de gafe na comunicação.
O que Francisco disse, ou não disse
O seu discurso aos bispos italianos torna-se um pôr-se em guarda contra o “carreirismo” e a “preguiça” – palavras fortes – que ameaçam todo funcionário eclesiástico. Uma ‘pancada’ sobre o “banco do Vaticano” (“O Instituto para as Obras de religião – IOR) é interpretada como ameaça de fechamento e um alto responsável da Cúria precisa recorrer à mídia para desmenti-la. A prestação de contas de um encontro privado entre o Papa e a CLAR (Conferência Latino-Americana e Caribenha das religiosas e dos religiosos) é publicada no site da internet chilena e faz a volta do mundo.
Eis o que teria dito o Papa e o que foi imediatamente desmentido: “Na Cúria há pessoas santas, mas também uma corrente de corrupção. É verdade que isso existe. Fala-se também de um lobby gay, e é verdade que também este existe”.
O estilo direto e aberto do papa Francisco contribui para sua popularidade, mas se volta contra ele, de tanto que se multiplicam as indiscrições, referidas por testemunhas de seus encontros. Fizeram esta experiência também os quarenta parlamentares franceses que foram encontrá-lo sábado, dia 15 de junho, em Roma. O papa comentou seu trabalho de representantes eleitos: “Propor leis, emendá-las, abrogá-las”. O que imediatamente foi interpretado como nova forma de oposição da Igreja ao matrimônio para todos. “O papa pede a abrogação do matrimônio para todos” foi o título escolhido por alguns meios de comunicação. Quando não era exatamente aquela a sua mensagem, embora a palavra “abrogar” num discurso não fosse realmente dita por acaso.

Medo na Cúria

Já se percebem muitas hipóteses sobre a reforma da Cúria romana, que tinha sido solicitada pelos cardeais antes do último conclave em março e que já está em fase de aviamento. É neste terreno que muitos estão esperando as escolhas do Papa Francisco. Ele ainda não nomeou um novo secretário de Estado – a função continua sendo ocupada pelo temido cardeal Tarcisio Bertone, tida na máxima discrição – mas aplica ao governo central da Igreja inovações que os membros da Cúria encaram quase com terror. Há, por exemplo, um grupo constituído por oito cardeais, representantes da diversidade dos continentes, encarregados de aconselhar e apoiar o Papa e de lançar as bases de um novo modo de governar.

Este grupo ainda não tem nome, mas já se fala dele como de um “Conselho da Coroa”, experiência inédita na história. Este grupo, que Jorge Mario Bergoglio conhece bem e estima e entre os quais figuram personalidades progressistas (como o cardeal Maradiaga, de Honduras, que é seu coordenador), reunir-se-á no início de outubro em Roma, mas já é objeto das esperanças das correntes reformadoras da Igreja, que denunciam há tempo a centralização e a burocracia romana.

Ainda estamos longe de uma reforma democrática. Este Conselho terá somente um papel consultivo, mas já são dadas orientações que visam a uma redução dos subalternos e do número dos ministérios, a maior transparência, à introdução de uma “colegialidade” de governo entre Roma e as Igrejas locais. Provavelmente a Cúria se tornará menos sufocante...

Será preciso esperar para ver se estas promessas serão confirmadas, mas o papa Francisco não cessou de espantar-nos. O próximo encontro será, em julho, a Jornada Mundial da Juventude no Brasil – sua primeira viagem de papa ao exterior – onde o esperarão três milhões de pessoas.
Slate, 20-06-2013.
desde a eleição do papa Francisco e uma minirrevolução está sacudindo a Igreja católica – e o seu bilhão de fiéis. Tudo, no estilo, nos temas, nas reformas anunciadas, distingue Jorge Mario Bergoglio do seu predecessor Joseph Ratzinger, embora a relação entre os dois papas seja muito cortês. Entre outros aspectos, os dois homens se preparam para subscrever juntos uma encíclica sobre a fé cristã, iniciada por Bento XVI e levada a termo por Francisco, e será a primeira vez na história da Igreja que acontece algo semelhante.
O comentário é de Henri Tincq, por longos anos o jornalista especializado em assuntos do Vaticano, que escrevia no Le Monde. O comentário é publicado na revista eletrônica francesa Slate, 20-06-2013. A tradução é de Benno Dischinger.
O papa Francisco se libertou do arrocho da Cúria romana – o aparato de governo da Igreja – da qual Bento XVI era refém. Fez a escolha simbólica fundamental de não mais residir nos apartamentos privados no palácio pontifício, que considera sinistros, separados do mundo exterior, demasiado próximos à Cúria, e de refugiar-se em Santa Marta – no interior da Cidade do Vaticano – onde residem os visitantes religiosos e os cardeais durante o conclave.
Ali encontra, em toda simplicidade, o que quer, sem considerar o protocolo; levanta-se às 4h30, se dirige para as refeições na sala comum, trabalha, recebe, vai à cama cedo. Vai ao Palácio Pontifício somente para as audiências de alto nível (como as dos chefes de Estado). Assim a Cúria não pode aprisioná-lo, nem decidir para ele o programa dos seus encontros, nem filtrar as informações que lhe chegam. Toma a peito toda uma cultura vaticana, cuja força de inércia e cujo gosto do segredo são terríveis. Jovial, espontâneo, este papa latino-americano necessita de contatos humanos, enquanto seu predecessor governava de maneira solitária. Cada manhã, na capela de sua residência, recebe grupos de visitantes – entre os quais funcionários do Vaticano – para sua missa cotidiana, no decurso da qual prega como um simples pároco e distila suas mensagens, a propósito do demônio, da mundanidade e do matrimônio. 
Quando vai à Praça de São Pedro, desce do papamóvel para beijar crianças e deficientes. Provoca risadas dizendo que a Igreja não é “uma baby-sitter”, mas “uma mãe”; ou convidando religiosas a não comportar-se como “donzelas”.
A montanha de gestos e palavras é surpreendente, mas já se pode entrever aonde vai este pontificado: para a defesa de um cristianismo social voltado à pureza das origens, autêntico nas suas convicções, empenhado pelos mais débeis e os excluídos (“Uma Igreja de pobres para os pobres“).
O papa jesuíta fustiga a “mundanidade” e a hipocrisia que reinam, segundo ele, em sua Igreja, ou a tendência católica a “ser auto-referencial”. Evoca a ameaça do demônio e do pecado, reclama por profundas reformas da economia mundial, aponta o dedo contra o narcisismo da sociedade, convida os fiéis a irem evangelizar as “periferias”: “Se a organização assume o predomínio, o amor diminui e a Igreja se torna uma ONG”.
Ainda não se pronunciou de maneira precisa sobre o aborto ou o matrimônio para todos, mas ninguém pensa que pretenda atenuar sobre estes pontos as proibições da Igreja. Trata-se, em definitivo, de um discurso de ruptura e de verdade que é facilmente escutado, a julgar pelo entusiasmo das “audiências” repletas e transbordantes na Praça São Pedro, mas que perturba profundamente a “máquina” vaticana. Esta última não controla mais as declarações verbais do Papa, já não sabe mais que estatuto conferir às suas palavras e às suas pregações cotidianas, à narração dos seus encontros espontâneos difundida pela mídia e interpretada até as últimas consequências. De que deriva uma impressão de cacofonia e de gafe na comunicação.
O que Francisco disse, ou não disse
O seu discurso aos bispos italianos torna-se um pôr-se em guarda contra o “carreirismo” e a “preguiça” – palavras fortes – que ameaçam todo funcionário eclesiástico. Uma ‘pancada’ sobre o “banco do Vaticano” (“O Instituto para as Obras de religião – IOR) é interpretada como ameaça de fechamento e um alto responsável da Cúria precisa recorrer à mídia para desmenti-la. A prestação de contas de um encontro privado entre o Papa e a CLAR (Conferência Latino-Americana e Caribenha das religiosas e dos religiosos) é publicada no site da internet chilena e faz a volta do mundo.
Eis o que teria dito o Papa e o que foi imediatamente desmentido: “Na Cúria há pessoas santas, mas também uma corrente de corrupção. É verdade que isso existe. Fala-se também de um lobby gay, e é verdade que também este existe”.
O estilo direto e aberto do papa Francisco contribui para sua popularidade, mas se volta contra ele, de tanto que se multiplicam as indiscrições, referidas por testemunhas de seus encontros. Fizeram esta experiência também os quarenta parlamentares franceses que foram encontrá-lo sábado, dia 15 de junho, em Roma. O papa comentou seu trabalho de representantes eleitos: “Propor leis, emendá-las, abrogá-las”. O que imediatamente foi interpretado como nova forma de oposição da Igreja ao matrimônio para todos. “O papa pede a abrogação do matrimônio para todos” foi o título escolhido por alguns meios de comunicação. Quando não era exatamente aquela a sua mensagem, embora a palavra “abrogar” num discurso não fosse realmente dita por acaso.

Medo na Cúria

Já se percebem muitas hipóteses sobre a reforma da Cúria romana, que tinha sido solicitada pelos cardeais antes do último conclave em março e que já está em fase de aviamento. É neste terreno que muitos estão esperando as escolhas do Papa Francisco. Ele ainda não nomeou um novo secretário de Estado – a função continua sendo ocupada pelo temido cardeal Tarcisio Bertone, tida na máxima discrição – mas aplica ao governo central da Igreja inovações que os membros da Cúria encaram quase com terror. Há, por exemplo, um grupo constituído por oito cardeais, representantes da diversidade dos continentes, encarregados de aconselhar e apoiar o Papa e de lançar as bases de um novo modo de governar.

Este grupo ainda não tem nome, mas já se fala dele como de um “Conselho da Coroa”, experiência inédita na história. Este grupo, que Jorge Mario Bergoglio conhece bem e estima e entre os quais figuram personalidades progressistas (como o cardeal Maradiaga, de Honduras, que é seu coordenador), reunir-se-á no início de outubro em Roma, mas já é objeto das esperanças das correntes reformadoras da Igreja, que denunciam há tempo a centralização e a burocracia romana.

Ainda estamos longe de uma reforma democrática. Este Conselho terá somente um papel consultivo, mas já são dadas orientações que visam a uma redução dos subalternos e do número dos ministérios, a maior transparência, à introdução de uma “colegialidade” de governo entre Roma e as Igrejas locais. Provavelmente a Cúria se tornará menos sufocante...

Será preciso esperar para ver se estas promessas serão confirmadas, mas o papa Francisco não cessou de espantar-nos. O próximo encontro será, em julho, a Jornada Mundial da Juventude no Brasil – sua primeira viagem de papa ao exterior – onde o esperarão três milhões de pessoas.
Slate, 20-06-2013.

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